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DIREITO & DEVERES

Transfusão de sangue em pacientes Testemunhas de Jeová: Quem deve decidir?

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Foto: Reprodução / Fonte: Correio Paraense

O ser humano, enquanto pessoa racional, tem a necessidade de acreditar em algo, e sob essa necessidade está assentada a religião que oferece ao homem a crença que alimenta sua consciência, dando-lhe alento e esperança. A religião sempre caminhou lado a lado com a humanidade e foi e é, ainda, uma fonte de resposta e sabedoria que guia os passos de cada um.

Dado essa relevância, a atual carta constitucional brasileira positivou a consciência e a liberdade de religião como direitos fundamentais, ou seja, direitos essencias para o desenvolvimento da capacidade humana e inseparáveis do homem durante sua existência. Assim, a localização desses direitos na lei suprema brasileira revela que a sociedade valoriza e deseja que todos exerçam seus direitos fundamentais sem o receio de violações.

Nesse contexto, a questão dos membros da religião Testemunhas de Jeová merece especial atenção dado o imbróglio jurídico que esse assunto causa na doutrina e, amiúde, no pretório. Na jurisprudência pátria é possível encontrar várias decisões conflitantes. Algumas a favor dos religiosos e outras desfavoráveis. Mas a questão que se visa responder neste artigo é: Testemunhas de Jeová podem decidir pela recusa a transfusão de sangue? E se correrem risco de perder a vida, ainda possuem o direito de recursar o tratamento hemoterápico? O que se pode extrair da CF/88 sobre o assunto em epígrafe?

Inicialmente, é salutar ressaltar que qualquer ponderação de princípios constitucionais exige que se considere as circunstâncias concreta do caso. Logo, o primeiro passo é averiguar quem são as Testemunhas de Jeová e o porquê recusam sangue.

Os membros da religião sub examen não são pessoas fanáticas que desejam morrer, contrariamente, buscam tratamentos médicos eficazes que preservem a saúde e salvaguardem a vida. Na realidade elas desejam viver e acreditam na cura pela ciência e a buscam quando necessitam. Esses religiosos se submetem a qualquer tratamento médico que não envolvam sangue. Criaram uma rede global de médicos que estejam dispostos a fazer tratamentos sem sangue em consulentes Testemunhas de Jeová chamado COLIH (Comissões de Ligações com Hospitais) que conta, atualmente, com mais de 100 mil médicos espalhados em 150 países que aceitaram o desafio de cuidar de pacientes religiosos sem sangue. Portanto, os religiosos desejam viver, mas não querem violar suas crenças concernente a tratamentos sanguíneos.

Entretanto, reiteradamente, há a indisponibilidade, tanto no sistema público quanto particular, de tratamento de saúde que respeitem e preservem a crença de consulentes religiosos. E é justamente aqui que se inicia as controvérsias entre médicos e pacientes que comumente terminam em um tribunal.

O direito à vida garantido no art. 5, caput, da Constituição não se resume a mera existência biológica. Vida não é apenas a existência física. Mas é, também, a existência espiritual. Assim, quando a CF/88 positiva o direito à vida como fundamental está determinando que qualquer cidadão poderá reger sua existência baseados em sua consciência e liberdade. Ou seja, o direito à vida garante ao paciente a prerrogativa de decidir com autonomia sobre seu corpo.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao cassar antecipação de tutela que autorizou a transfusão de sangue decidiu:

(…) o direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam.

(…) É conveniente deixar claro que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer ouro tratamento clínico, desde que não envolva a aludida transfusão; dessa forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento clínico, como exposto na petição recursal.

O Tribunal de Justiça do Pará também tomou decisão relevante sobre o assunto, estabelecendo:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA? REJEITADA. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. PROCEDIMENTO CIRÚRGICO. EXISTÊNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA. TRATAMENTO FORA DE DOMICÍLIO. DIREITO À SAUDE. DEVER DO ESTADO. 1. A obrigação constitucional de prestar assistência à Saúde funda-se no princípio da cogestão, que significa dizer uma participação simultânea dos entes estatais nos três níveis (Federal, Estadual e Municipal), existindo, em decorrência, responsabilidade solidária entre si pelo cumprimento do dever de fornecer tratamento médico e medicamentos, bem ainda, não havendo que se falar em competência exclusiva dos Municípios para arcar com as despesas de tratamento médico, como quer fazer crer o Agravante. 2. Sendo o direito à liberdade religiosa, direito fundamental, deve o Estado assegurar o tratamento de saúde resultante de escolha religiosa ou crença. 3 – Havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando ele se apresenta como única via que vai ao encontro da crença religiosa da paciente. 4 – A falta de dotação orçamentária, não serve para afastar o cumprimento das obrigações constitucionais do Estado, que é salvaguardar a vida de todo e qualquer ser humano, máxime quando inexistirem provas robustas acerca da falta de orçamento.

Ao recusar transfusão de sangue o paciente religioso não está optando pela morte. Mas opta pela vida e é obrigação do Estado efetivar o direito à vida do paciente sem violar sua consciência, autonomia e liberdade. Assim, as Testemunhas de Jeová podem recusar transfusão de sangue, pois isto é uma expressão da liberdade religiosa garantida pela Constituição gerando para o Estado o dever de respeitar a decisão do consulente.

Essa questão se queda clarividente no art. 15 do Código Civil pátrio que positiva:

Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

O dispositivo retrotranscrito estabelece que, mesmo diante de risco de vida, ninguém é obrigado a se submeter a tratamento médico que não deseje. Nem mesmo a possibilidade de perder a vida tira do paciente o direito de exercer a autonomia de forma plena e livre de interferências.

O Código Civil impõe ao médico a obrigação de atuar somente quando houver expressa autorização do paciente com o propósito de evitar ingerências ilegais sobre o corpo humana.

O professor Carlos Roberto Gonçalves leciona:

A regra desse artigo 15 obriga os médicos, nos casos mais graves, a não atuarem sem prévia autorização do paciente, que tem a prerrogativa de se recusar a se submeter a um tratamento perigoso. A sua finalidade é proteger a inviolabilidade do corpo humano.

Portanto, a legislação e a jurisprudência embasam a legitimidade do paciente Testemunha de Jeová de recusar a tratamento com componentes sanguíneos. O paciente, mesmo diante da morte, mantém sua autonomia impondo ao médico a necessidade de autorização para que se realize qualquer procedimento sobre o corpo do consulente.

Portanto, a decisão nos casos envolvendo transfusão de sangue em pacientes Testemunhas de Jeová deve ser tomada pelo próprio paciente, afinal é sobre ele que recairá as consequências de sua decisão. Se o paciente estiver consciente e for capaz terá total direito de recusar qualquer tratamento como manifestação de sua autonomia.

Por: Samuel Medeiros – Advogado, Professor Acadêmico, Especialista em Direito das Famílias pela Universidade Cândido Mendes, Mestrando em Propriedade Intelectual pelo Instituto Federal do Pará, Sócio do Simões Bentes & Medeiros Advocacia Internacional, e-mail: Samuel_medeiros@ymail.com

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